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Cuidado com o vão

Desfazem-se os últimos segundos de uma torturante amizade de onze anos. Logo, o metrô chegará à Sé e Bárbara estará livre de Sofia pra sempre. Aturou-a durante a faculdade porque eram colegas de classe. Depois, aceitou se esbarrarem nas festas graças às amigas em comum. Por gratidão compulsória, ignorou o desprezo que sentia ao ser indicada por ela a uma vaga na agência dela. E devolveu a contragosto esse favor, aceitando dividir seu apartamento quando a chata precisou de abrigo. Seria algo provisório. Mas se arrastou por três invernos, encerrados apenas agora com sua mudança para o Rio de Janeiro. Ia usar o clássico a gente se fala, que fecha relacionamentos sem dor. Em vez disso, deixa escapar um não tenho mais saco pra te aguentar, enfiando um graveto sob as unhas da ex-amiga.


Uma pena não ter esperado as portas se abrirem. Compreensível, claro. Foram quatro anos refazendo os textos da incompetente nos trabalhos do curso de Publicidade. Mais duas temporadas dando carona para a bêbada após as baladinhas, já que moravam perto. Outro par de anos engolindo os destemperos de Sofia como sua chefe. Por fim, enquanto moraram juntas, ouviu inúmeras lamúrias de desilusões amorosas, reclamações de picuinhas de escritório e confissões sobre carências familiares. Além de perder a privacidade até no quarto. O desabafo estava preso na laringe e sempre a arranhava empurrado pelo ar do desgosto. Dessa vez, escapuliu. O que seria anestesiado por sua saída imediata do vagão. Infelizmente, no final de sua fala, o metrô parou no meio do túnel.


Estamos aguardando a movimentação do trem à frente.


De repente, todos aqueles avisos sonoros se justificam. Naquela manhã, alguém sem gênero, cara ou idade não resistiu a pressionar o botão de soneca quando o alarme tocou. Mesmo assim, achou que podia pedir um pão de queijo pra viagem na padaria a caminho da estação. E tentou compensar o tempo perdido empurrando os outros usuários na catraca e saltando os degraus móveis da escada rolante. Nem se importou com o sinal de fechamento das portas do trem que se preparava para sair da Sé em direção à Barra Funda. Um preguiçoso e egoísta qualquer quis entrar no último momento e agora Bárbara precisa esperar mais do que gostaria para se afastar de Sofia pouco depois de completar o adeus com um contundente vê se me esquece, sua mala.


Quem segura as portas atrasa a vida dos outros.


Faz muito sentido isso quando alguém é impedido de sumir de vista após espinafrar uma conhecida na frente de todos. O silêncio no vagão preenche o minguado espaço entre as pessoas e aumenta o desconforto geral. Pela câmera de segurança, um metroviário observa a cena e dá dois petelecos no seu monitor para destrava-lo daquele instante no qual ninguém se mexe ou respira. No reflexo opaco no vidro, Bárbara vê Sofia estática atrás dela e torce para a falha da linha também ter prejudicado a noção de tempo das pessoas e aqueles segundos-minutos serem um fenômeno natural notado apenas por ela.


Puxa, você era minha colega favorita na faculdade. Sofia nunca soube deixar pra lá, daquelas que diz o tempo todo não queria incomodar – mas incomoda –, espero não te atrapalhar – e atrapalha –, se não for incômodo – sempre é. Barbara já transpira. As dezenas de testemunhas em volta trocam olhares cúmplices apesar de não se conhecerem. A única em quem eu confiava naquelas noites de bebedeira, quem mais eu admirava, a ponto de te chamar pra trabalhar comigo. Lembra? Foi seu primeiro emprego em uma agência de verdade, quando cansou de andar por aí com currículo na mão só levando porta na cara. A gente dividiu a mesma casa por todos esses anos e eu nunca reclamei de você deixar a pia cheia de louça suja nem pedi pra você gemer mais baixo quando transava com seu ex-namorado. Porra, Barb, eu raspava todo dia seu cocô da cerâmica da privada porque você tem nojinho daquela escovinha. Todo santo dia.


Estamos trabalhando para normalizar a circulação de trens o mais rápido possível.


Bom saber, mas o estrago está feito. Barbara já poderia estar na linha azul, indo para o Paraíso, passando agora pela Liberdade, talvez até pela São Joaquim, bem longe de Sofia e sua nuvenzinha escura, seu derrotismo, sua autoindulgência, sua insistência em lembrar os outros de como a vida dela é vazia. Passaria o fim de semana com os pais e depois pegaria a ponte aérea, deixando a outra no vácuo. Telefone e redes sociais bloqueados, nunca mais se veriam. Ao invés disso, estão a menos de dois passos de distância e a outra não parece disposta a deixar pra lá.


Se em todos esses anos você não gostava de mim, disfarçou muito bem. Não parecia ter problema comigo quando eu te emprestava dinheiro pra cobrir o cartão de crédito ou toda vez que me pediu pra mentir pro Rogério que estávamos juntas enquanto se enfiava no quarto com o Lucas. Os passageiros nem disfarçam mais. Passaram dessa fase e já olham direto pra ela, julgando e condenando. Logo, voltarão à quarta série e começarão a destilar provocações, sedentos por uma briga. Não sabia o quanto você era falsa, Barb. Nem tem coragem de olhar na minha cara.


O trem se movimenta. Há um suspiro geral no vagão, alguns por alívio, outros por decepção. Em menos de dez segundos, chegam à plataforma. A porta demora outra encarnação para abrir. Tempo suficiente para Bárbara soltar aquele a gente se fala, agora um desperdício. Aperte o passo e não olhe pra trás até o chegar ao Rio.


__________

Sobre o autor:

Jornalista refugiado na ficção. Integrante do coletivo literário Discórdia (www.facebook.com/ColetivoDiscordia/?ref=bookmarks), publica contos e poesiaeventualmente do Medium (@alexxavier_27042).

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