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Notícia do momento

Lá estava o cadáver na calçada da avenida. Meio-dia, sol quente alto rachando no céu. A avenida fervilhando de carros e pessoas. Algumas tão desocupadas que se aglomeravam ao redor do corpo e outras, tão agitadas, não viam ou ignoravam sua presença. O calor produzia um bafo quente e a cidade toda parecia cozinhar igual uma panela de pressão.


São Paulo, 2000, tudo numa mudança brusca de século, ninguém notava a doença que se alastrava por toda uma geração; e lá estava o jovem corpo, todo quebrado e torto, espichado no chão. Anteriormente era possuidor de uma feição bonita: corpo escultural, tão moço e belo, quase não se notavam essas características. Havia perdido alguns dentes, fratura exposta no ombro e perna direita, a outra, torta para a esquerda, o rosto chapado ocultava toda uma órbita ocular no cimento quente do meio-dia de verão.


Todos os que se aglomeravam palpitavam incessantemente: caiu? Se jogou? Era gay? Drogado, depressivo? Coitado, sem juízo. Vai pro inferno, pecador. Suicídio? Como tem coragem. E o corpo ali, detalhe, respirando sofregamente, ninguém tocava a não ser para vasculhar os bolsos que pareciam cheios; estavam cheios, de tristeza e desespero. Tiraram dele relógio e aparelho celular. Teve quem disse que o rapaz gravou vídeo antes de se matar. "Coitado" alguns murmuravam "não tinha mais jeito, estava perdido", apontavam. Pareciam donos da razão. Não fosse uma pobre moça tatuada, aflita em choque perante a situação, tremia com o telefone ao ouvido chamando emergência: "o rapaz tá respirando", ela dizia. "Ele não morreu, precisa de ajuda!" soluçava. Seria única que parecia ter coerência com a situação, não fosse também a pobre senhorinha da limpeza, que saíra da loja à frente para derramar algumas lágrimas de comoção.


Algumas caras feias torciam o nariz e cochichavam. Especulavam que ele estava se exibindo na sacada, tentando apenas chamar atenção. "Deve ter caído, burro", afirmavam ignorantes de toda a situação. Via-se alguns tentando entender como ele havia parado ali, tão longe do prédio. Os que tinham visto a queda apenas explicavam: "pulou lá do quinto, caiu no telhado do ponto de ônibus, tá tudo quebrado tá vendo as telhas? Aí caiu aqui, e não se mexeu." Ouvia-se o decoro, quase que sinfonia para o luto do moço, a palavra "coitado" vibrava sem mostrar solução. Outros, preocupados, também ligavam para o serviço de saúde e, frustrados, reclamavam não ter concluído ligação. "Cadê a família desse rapaz?" um senhor questionou sobressaltando a voz. "Por que ninguém ajuda ele?" Fazer o quê? Mexer no corpo e se incriminar? A dúvida que pairava já não era mais qual foi o motivo. Os que apontavam o telhado do ponto de ônibus debatiam quem iria pagar pelo prejuízo? Era essa a preocupação.


"Era doente de espírito", disse um jovem agachado próximo ao corpo. "Não tem nenhum conhecido aqui para orar comigo?" Ficou sozinho.


O calor que subia do asfalto fazia o tumulto se dissipar e, tão logo se extinguia, voltava a se formar. A moça tatuada ainda tremia junto da senhora da limpeza. As duas conversavam com ares de sofrimento. Uma ambulância ousou dar presença, mas foi atender a outro acidente; este foi de carro, com mais gente envolvida, gente inocente. Gente que não decidiu se matar.


Apareceu um homem bastante assustado com a figura moribunda quebrada ao chão. Ficou estático olhando a cena, com a boca meio aberta, os olhos nublados de dúvidas. O corpo quase que não respirava, via-se apenas uma narina ensanguentada abrindo e fechando, fraca. Ninguém mais podia fazer nada e os que faziam em nada ajudavam. Esticavam braços com câmeras e celulares, pipocando flashes e vídeos falando da mais nova notícia do momento: o corpo quase morto que quebrou o ponto de ônibus.


Por fim apareceu socorrista. Chegaram correndo com maca e carrinho de reanimação. O afoito paramédico pedia aos berros para que todos se afastassem, mas era ignorado. O grupo de desocupados ainda gravava a tentativa de salvação. O corpo, agora de barriga para cima, mostrava um rosto quadrado, de nariz torto e olho estourado, distante da figura que já fora um dia. A caixa torácica parecia aberta, sem dúvida, composta por três ou quatro costelas partidas. Depois de medição de batimento cardíaco foi que o socorrista anunciou: morreu o moço, tem menos de dez minutos. Morreu no desgosto, no desamparo, na procura por aceitação. Foi o corpo da janela de seu quarto, procurando fuga ou salvação, depois de tanta luta e lágrima derramada, se rendeu à negligenciada depressão.


Morreu ali, sendo assistido por tantos e mesmo assim ignorado. Morreu no calçadão daquela avenida, fervilhada bem ao meio-dia, triste e torpe, em solidão.





__________

Sobre a autora:

De origem simples, rodeada e influenciada por familiares docentes, Adeliana Ricce (Ade Sany) desenvolve seu trabalho de prosas e romances desde a adolescência, onde explana com seu olhar dramático e sonhador sobre suas visões de mundo, sentimentos e essencialmente, experiências.

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