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O universo vivo da palavra


Desde menino, penso que a coisa mais intrigante do universo é a palavra. Eu não entendia de onde exatamente ela surgia. Quem estabeleceu que cavalo, pedra, cascalho têm que ter esses nomes? Perguntei à minha mãe. Ela colocou a mão no queixo, olhou pra cima, depois disse: – Deixa de besteira, menino. Vá procurar o que fazer! E fui mesmo – correndo! Porque as palavras dela vieram naquele tom que palavra tem quando moleque está prestes a levar uma surra. Porém, de longe, já em lugar seguro, olhei para trás. Minha mãe estava lá, com a mão no queixo, olhando pra cima, pensativa.


A princípio, o sentido de cada palavra me parecia arbitrário. Quem já fechou os olhos e repetiu o mesmo termo até atingir o ponto em que a palavra perde totalmente o vínculo com a imagem que ela representa, sabe bem o que estou falando. Ou será que fui o único a fazer isso? Duvido! Palavra é bicho estranho. Algumas, mal a gente pensa nelas e as imagens já se formam na mente. Mas não é sempre assim. Às vezes a palavra se transforma, evolui, se traveste, muda de time. Quer exemplo? Cavalo. Quando menino, lá na roça, cavalo era aquele bicho de quatro patas, puxador de carroça, filho de uma égua, comedor de capim, que relincha e deixa um monte de sujeira pelos caminhos. Contudo, quando meu avô deixou de ser peão de fazenda e se mudou para a cidade, indo trabalhar em oficina mecânica, certa vez fui levar sua marmita e o ouvi dizer – apontando para um carro – que aquele motor tinha cento e vinte cavalos. Olhei para o veículo, não vi animal algum. Perguntei a ele. Mas, ocupado com o cliente, só me lançou um rabo de olho. E nisso também existe palavra – silenciosa e simbólica – embutida nos gestos mais simples. Entendi que não devia interromper a conversa dos adultos. Tive medo de levar uns cascudos. Peguei minhas tralhas; fui embora.


Por essa experiência, notei que há também palavra que a gente não consegue formar ideia concreta. Medo é uma delas. Não dá pra visualizar o que seja, mas todo mundo sabe quando sente. Minha avó, quando ouvia histórias de caçadores, ao chegar naquelas partes em que são narradas coisas que até Deus duvida, dizia: – Credo em cruz! Até me arrepiei toda! Falava isso, apontando para o braço onde se viam os pelos todos em pé. Religiosa ao extremo, ela gostava de avisar pra gente tomar cuidado com o que fala, pois as palavras têm poder.


Demorei a entender isso. Os espíritas e os budistas ainda repetem essa máxima,quando ouvem alguém desejando mal a outro. Não duvido dos espíritas, nem dos budistas. Mas, adolescente que fui durante a ditadura militar, aprendi outro sentido para o poder das palavras. Vi generais moverem tropas e colocarem a polícia para bater, matar, torturar e desaparecer com gente que, segundo eles, usava a palavra de modo subversivo. Professor, estudante, escritor, filósofo, poeta, cantor, operário, cineasta, sindicalista – ninguém escapou. Todos entraram no malho. Tempos difíceis aqueles. O brasileiro aprendeu a ser mais contido. Os adultos falavam baixo. Diziam somente a metade da frase. Quando se perguntava a razão daquilo, explicavam com chavão: – Pra quem sabe ler, um pingo é letra!


Deve ser verdade. Ou mais que isso. Pois, anos mais tarde, um amigo meu foi à China. Lá aprendeu a falar Mandarim, num estilo meia-boca. Para onde ia levava bilhetes, escritos por quem tinha maior domínio do idioma. Um dia chamou o táxi e entregou ao motorista o papel com o endereço. Foram parar bem longe do destino pretendido. Então, desceram do carro e começaram a perguntar. Depois de muita labuta, acharam o erro. Quem escreveu o endereço no papel havia posto um pingo abaixo da primeira letra de determinada palavra, quando o certo seria ter colocado aquele mesmo pingo abaixo da última letra da mesma expressão. Essa pequena diferença equivalia a dizer norte ou sul. Mais que uma letra – na China –, pra quem sabe ler, um pingo pode ser um hemisfério inteiro.


Como se vê, palavra é bicho marrento, cheio de artimanha. A escola, porém, teima em ensinar o uso único, padronizado – a língua culta. Mas a palavra nasceu livre e sempre cobrará tal liberdade. É só ganhar a rua e já corre solta e se desembesta, transformando-se a cada boca, a cada beco, a cada esquina. Em um país como o Brasil – imenso –, a mesma palavra pode formar imagens distintas na mente de cada um de nós. Em Brasília, sempre fui à padaria comprar pão de sal. No Espírito Santo, pede-se pão francês. Gaúcho, no entanto, vai à padaria e pede meia-dúzia de cacetinhos. Deus me livre! Falar isso no Rio de Janeiro é ter a vida arruinada para sempre.


Não obstante, tive um professor de Português que me garantiu: – Sinônimo não existe! Porque, segundo ele, não há palavra perfeitamente igual à outra. Com raras exceções, cada uma possui contexto próprio. Ele estava certo. Cada palavra é única e há explicação lógica para isso. Um exemplo é o mundo das crianças, onde é comum o uso de termos com sílabas dobradas – babá, pipi, xixi, pompom, bumbum. Isso se dá porque, vivendo suas primeiras experiências linguísticas, para os pequeninos fica mais fácil aprender pronúncias simples. Contudo, não fica bem a um marmanjo dizer: – Vou levar meu ‘au-au’ para passear. Porque cada palavra tem contexto inerente ao tempo e ao lugar. Outro exemplo é o termo bosta, geralmente relacionado ao meio rural. O médico, contudo, não nos manda fazer exame de bosta. Manda que façamos exame de fezes. Porque essas palavras não são sinônimas. Fezes é expressão que induz o pensamento ao ambiente de laboratório, em contexto científico. Bosta é aquela sujeira que os cavalos e as vacas deixam pelos caminhos.


Porém, não adianta discriminar. Palavra é assim mesmo: brota a toda hora, em todo lugar; de toda forma. Como se fosse gente, até muda de vida. Nasce pobre. Fica rica. Começa vulgar, depois entra em poema, livro, monografia, até atingir seu nirvana – a gramática. Quem diria, por exemplo, que palavrão viraria interjeição? Quando eu era criança, falar palavrão era o mesmo que pedir pra perder os dentes – o tapa corria solto. Hoje se entendeu que só é palavrão quando usado para agredir. No mais, é apenas reforço linguístico, que busca expressar, de modo autêntico, a emoção vivida a cada instante. E ainda bem que é assim. Senão, as crianças perderiam metade da dentição apenas jogando futebol. Afinal, qualquer mera pelada de rua nos induz a mil interjeições!


Tem ainda a gíria – forma cotidiana de criar novos termos. Por exemplo: tentando se comunicar sem que a polícia entenda, os presidiários criam palavras. À medida que os meganhas descobrem seus significados, os presos criam outras. Porém, no contato diário com os detentos, os cana-duras também fazem uso da gíria própria das cadeias, que ganha as ruas, os livros, o cinema, a televisão e, assim, passa a ser dita no país inteiro. Do mesmo modo, os adolescentes inventam expressões específicas, que os identifiquem conforme suas tribos, seu tempo e lugar. Os jovens adoram inverter o sentido das palavras. Hoje se chamam, uns aos outros, de velho, ou apenas véi. Logo eles, que nem adultos são, dizem: – E aí, véi! Quando jovem, eu dizia: – E aí, bicho! Talvez fosse a forma de minha geração expressar seu descontentamento com a condição humana no Brasil. Porque, em tempo de ditadura, às vezes é melhor ser bicho. Hoje, no entanto, quando falo assim, todos já sabem que sou velho. Bicho deixou de ser gíria – virou indício da faixa etária avançada de quem usa o termo. É a palavra trocando a camisa.


Nessa constante metamorfose, há que se ter cuidado. Pois, palavra é coisa tão danada que, às vezes, coloca até nossa vida em risco. Em meio a uma discussão, não aconselho ninguém a dizer que o outro é um banana. Ainda mais se o sujeito estiver armado. Filho de baiana com mineiro, eu gosto mesmo é de calmaria. Por isso, minhas palavras prediletas são as que diminuem com o tempo, sem perder significado. Isto é, vira ié; não é, vira né; belo, vira bel – e por aí vai. É a apócope: caso comum quando a vogal final de uma palavra se enamora da vogal inicial de outra. Aí elas juntam os trapinhos. Casamento perfeito – todo mundo se entende bem e transpira menos ao conversar.


Palavra é algo tão livre, que aceita enxerto e até se casa com outras – mesmo as estrangeiras. Depois, com o tempo, tudo fica normal, como se sempre fora assim. A informática está aí, há décadas, enchendo o idioma de novas expressões. E tem mais: palavra tem importância até quando pronunciada de modo errado. Já fui numa feira onde havia de tudo – menos o plural. O vendedor gritava: – É dez maçã por dois real! Isso é a palavra avisando que, comumente, o formalismo linguístico é incompatível com a dinâmica cotidiana. Principalmente em determinados comércios – um s a mais e o freguês pode já estar na banca concorrente. Ainda sobre a questão do erro, lembro que, até há poucos anos, era comum ouvir termos como galfo, maumita, táuba, estáuta. Hoje, contudo, mesmo entre as pessoas mais simples, de renda mais baixa, é raro ouvir algo equivalente. É a palavra avisando – de forma concreta – que, a despeito do que afirmem os analistas políticos e econômicos mais pessimistas, a Educação avançou e, assim, o Brasil mudou para melhor.


Talvez, mais que comunicação direta, as palavras nos falem à alma, tentando ensinar tolerância, para que vivamos com maior abertura na forma de pensar e, por conseguinte, menor discriminação. Vai ver, a constante metamorfose das palavras nada mais seja que reflexo da inconstância humana. As palavras parecem dizer, a todo tempo, para que se abandonem os radicalismos.


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Sobre o autor:

Brasiliense nascido em 1964, estudou Economia pela Universidade Católica de Brasília. Em 2011 lançou 'Gritos Verticais', que lhe valeu o Prêmio Cláudio de Sousa de Poesia (Petrópolis-RJ). Em 2013 seu livro 'Os Irmãos Malês' venceu o Prêmio Novelas Históricas da Bahia (Salvador-BA). Em 2015 seu romance 'Sobre as Vitórias Que a História Não Conta' foi um dos vencedores do Prêmio Oliveira Silveira (MinC).

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