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E a carne se fez verbo


I: A FLECHA DO TEMPO


A lua era um rasgo circular mais negro que o céu, as estrelas ardiam em brasas e o mar ameaçava jogar suas ondas contra o firmamento. Correntes de ar, sólidas como rocha, chocavam-se ruidosamente. Próximos à baía, vulcões regurgitavam enfim o sangue milenar das mais profundas zonas da Terra. O canto aterrador da rasga-mortalha reverberava por toda a região.


O espetáculo era sublime.


Ela caminhava serenamente.


Seus pés não pareciam tocar o solo ressequido e acidentado. A delicadeza que empreendia ao andar, tão natural a si, era indiferente aos sulcos e às pedras do caminho. Os joelhos, ossudos, mas delicados, quase não se articulavam. Os músculos de suas pernas não davam sinais de contração.


Uma leve pelugem cobria a região do baixo-ventre, indo até o umbigo. Seus seios moviam-se discretamente a cada passo. Um colar de obsidianas emoldurava o pescoço fino. As pedras negras, tão rentes à pele, pareciam ser tão orgânicas àquela mulher quanto os dedos de suas mãos. Prateados, seus cabelos caíam em cascata por sobre os ombros.


Trazia um sorriso imperturbável quando cessou seus passos. Grandes olhos esquadrinharam a região. Não havia qualquer vestígio de vida ali.


A mulher ergueu os braços em riste.


— O caos é inevitável.


Os cactos forçaram suas raízes a saírem do solo.


Espinhos de todos os matizes refletiam a luz dos astros celestes em agonia. Agouravam e retorciam-se. O berço de terra não os queria largar. Súplicas e lágrimas desmedidas. Os cactos conseguiam apenas suspender poeira e sombras.


A mulher, ainda de braços erguidos, sorria.


— O caminhar é necessário.


Um a um, os cactos libertaram suas raízes do solo hostil. Veias e artérias livres da Terra ressequida e infértil entoavam agora um cântico de vitória. As cinzas que caiam do céu tocavam seus espinhos e logo se dissipavam. O frescor da nova condição fazia suas carnes vibrarem. Lentamente, os cactos formaram um círculo em torno daquele corpo negro e formoso.


A mulher demorou o olhar em cada um deles.


Espectros projetados no ar rarefeito de vida. Seres ignorantes em resistência infrutífera. Acidentes genéticos perfeitamente replicados. Depósitos ambulantes de seiva amarga e leitosa. Invólucros de matéria podre e vil.


Depois de alguns tempos a observá-los, a mulher, cheia de cinzas, irrompeu num choro lancinante. Todo o seu corpo espasmava.


O braço esquerdo indicava o caminho à frente.


E tremia.


— A direção é uma só.


Os cactos, eufóricos, logo se puseram em fila e seguiram no sentido apontado. Seus espinhos tornaram-se ainda mais rijos e brilhantes. O verde da pele não parecia ser impressão da luz que os iluminava.


A insipiência caminhava em préstito suplicante e mudo.


Depois de se arrastarem por algumas distâncias, os cactos estancaram.


A mulher, totalmente encoberta pelas cinzas, dera seu último grito de dor.


Os cactos jogavam-se, um a um, no desfiladeiro.



II: A QUEDA


O ar que respiras te corrói.

Não há luz que chegue a olhos sujos de lama e dor.

O vácuo dentro de ti é extensão do nada que te cerca.

Teus joelhos não te levam ao Céu — teu fosso é muito fundo.

Fruto de mutações acidentais:

Pestilento,

Escasso,

Vil,

.


III: A CARNE E O VERBO


As massas verdes e compactas recém-espalhadas nas rochas começaram a fervilhar. Dilatavam-se. Liquefaziam-se. As bolhas, mal-surgidas, logo rebentavam. Densos vapores subiam até as abóbadas celestes. O cheiro era de putrefação. O ar pulsava. A morte agitava-se em vida. E se expandia. Átomos em vibração progressiva aumentavam progressivamente as distâncias entre si. A matéria das rochas, frente à temperatura crescente das massas, desintegrava-se.


A Terra logo se encheu de sulcos vaporentos.


E profundos. Cada vez mais profundos.


As nuvens, estimuladas pelos vapores venenosos, derramavam-se. A água vinda dos Céus escorria pelas encostas dos montes e seguia em direção aos fossos.


Dentro deles, as massas, com a chegada da chuva e dos sedimentos, adquiriam cor de barro. E ganhavam forma. Os espinhos tornavam-se sólidos como ossos; as seivas assumiam tons escarlates. Filetes rubros como sangue emaranhavam-se em nós complexos. A acidez das misturas decrescia continuamente.


Pulsação.


O Céu iluminou-se num último relâmpago. As estrelas, pouco a pouco, pararam de queimar. Também os vulcões não fumegavam mais. O mar finalmente abrandara suas águas e os ventos passaram a soprar em uma só direção.


Silêncio.


Às bordas dos fossos, unhas cravavam-se na Terra e forçavam saída.


Alguém olhava pelo rasgo da lua.



__________

Sobre o autor:

Fotógrafo e estudante de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), atualmente bolsista do projeto de graduação “Leitura e Produção de Textos Acadêmicos para Graduandos em Letras: Escriba”. Tem contos publicados em livros e revistas, além de fotografias expostas em eventos de seu estado.

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