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Notas Corriqueiras

O dia-a-dia, o corriqueiro, a visão do imediato é uma boa matéria para todo escritor que, como eu, gosta de observar o mundo, a vida pulsando, uma janela aberta. Talvez seja essa a maior matéria prima de quem tenha imaginação: tornar o cotidiano narrável. Um cotidiano que aparentemente é frívolo, especialmente nas urgências de nosso tempo. Toda hora é um perder a hora, todo o tempo é um perder tempo. Tudo se esvai com uma velocidade que oprime e sufoca nosso peito. Não nos sentimos livres e provavelmente nem sejamos também. A contemplação que, antes era uma arte, hoje tornou-se um quase crime. Na era do trabalho compulsivo, disciplinado e metódico é pecado contemplar. É impróprio ao sujeito desperdiçar seu tempo para observar o alheio, a paisagem, os pequenos detalhes de nossas vivências.


Esse mundo sem percepção e sem sentido retira de nossa consciência as projeções de nosso futuro. Não sonhamos mais. Não como antigamente. Hoje o sonho tornou-se um mercado de compras. Produzir para consumir. Consumir para produzir. A novidade se estabelece nessa interseção. O consumo – a compra do produto de última tecnologia – é o novo ciclo da humanidade. E o tempo moderno, fluído e liquefeito, torna rapidamente qualquer objeto obsoleto, assim como as relações humanas vão ficando empoeiradas no decorrer das auroras. A modernidade estabeleceu um horizonte de trocas de mercadorias, esquecendo-se dos intercâmbios de emoções. Ficamos esvaziados das sensações que o contato humano outrora, um tempo que nem é tão antigo assim, produzia. Nossa liberdade de ser, logo, foi reprimida. Não somos porque não sonhamos mais.


Nossas relações, incluindo nesse rol os relacionamentos mais morosos do que amorosos, são marcadas – quando não determinadas – pelo materialismo de nossa existência. Encerradas, portanto, vivemos esse círculo de consumo. Consumimos uns aos outros, com a ideia de não perder tempo nem para amar. Fatigados, seguimos sem rumo, desejando alhures um prumo, alguém que possa servir de ilha para aportar. Velejar sem bússola, à deriva dos ventos, livres de âncoras e obrigações inoportunas. Mas, todas essas coisas do coração demandam tempo. É só observar como tudo que é duradouro foi construído. Mas o desfrutar das horas vagas, horas para contemplação ou horas para o amor, hoje ninguém tem. Tempo é a mercadoria mais cara, é a joia mais rara: o que não estamos dispostos a perder.


Não há tempo para outras experimentações além da labuta diária, do entretenimento rápido, da viagem de dois dias. Não há tempo para descansos e pausas durante o dia. Não há tempo para conversas nem devaneios. Destinar um tempo para divagações é caminhar rumo à falência. O trabalho exige todo o comprometimento de nossas horas. Tempo para amar é representado como perda de tempo, posto que nesse mercado de coisas e pessoas, amor é produto em falta. Das histórias que poderíamos produzir ao acaso do ócio, nenhuma realmente aconteceu. Nenhuma ideia sobre alguma teoria que mudaria as estruturas dos paradigmas da ciência ou sobre os nossos bem-quereres é elaborada. Nenhuma reflexão é travada, seja na nossa intimidade, seja na intimidade de nossas amizades. Para isso exige-se tempo, uma quantidade significativa para demandar as forças de nossa imaginação. O tempo não nos pertence em sua totalidade. Livres são aqueles que detêm para si o tempo.


Volúveis, filhos do momento onde tudo se dissolve na rapidez com que somos consumidos pelo relógio, não temos memórias para partilhar. Dividimos o trabalho, os trunfos de uma compra, divulgamos as fotos de uma viagem. Mas não fruímos do tempo. Apenas representamos nossa parte nesse espetáculo que chamamos de vida. Falseamos emoções, sensações, experiências em retratos que recortam nossos momentos e demarcam nossas memórias. Estamos fragmentados. Eu reparo na quantidade de imagens que inundou o mundo, fotografias que revelam todos os detalhes de um evento, especialmente o intento de ostentá-lo. Ao espetacularizar as menores cenas de nosso cotidiano, tornamo-nos espectadores de nosso tempo. Deixamos de atuar sobre nossas vidas.


A paisagem nos escapa aos olhos fugaz, com contornos fantasmagóricos, como se desaparecesse lentamente aos nossos passos largos. Andamos imersos em pensamentos concretos. O corriqueiro tornou-se uma sucessão de acontecimentos repetitivamente cansativos. Nada mais é estranho e não há nada mais para ser estranhado. Acreditamos dominar o mundo; seres intelectuais superiores que decidiram explorar a natureza – apesar que tais ações constituam consequências desastrosas para nosso planeta. Na escala de produção, o progresso nos produziu padronizados, ritmados e acelerados. O progresso nos condenou a perder o tempo que acreditamos ganhar, quando procuramos conquistar um status quo de civilização.


Buscamos o progresso. Progresso assentado no avançar da técnica e da tecnologia. Um progresso que, muitas vezes, está avesso ao entendimento da natureza e da essência humana. Humanos, demasiados humanos, não queremos dispensar nas cordas do relógio ou no tear da fortuna algo tão valioso para questionar nossa existência, perscrutar em nossas almas os sulcos e as lacunas de nossa psique. Não nos permitimos a ousadia dessa liberdade. Vivemos num mundo onde não absorvemos nada do que nos rodeia. Não há contato que toque a pele ou visão que deslumbre. É preciso fotografar, registrar, repercutir e consumir. E, assim, não perder as horas de Cronos no usufruto de pequenos e delicados prazeres derivados das contemplações silenciosas, dos hedonismos de nossa intimidade.


O mundo, portanto, está abandonado a essa fantasmagoria? Estamos condenados à desordem das coisas que deixamos para a conta do passado? Será que vivemos todos perdidos entre o presente e o futuro, um mesclado ao outro, sabendo que logo ambos se tornarão pretérito? Onde depositamos tanto tempo e por que conseguimos perdê-lo tão facilmente? E se revistamos as memórias de nosso passado, como não conseguimos sentir sua profundidade mesmo revendo as fotos daquilo que vivemos? Por que a solidez desse mundo vai corrompendo suas estruturas e desfigurando-se em pleno ar? Há quem possa tangenciar o tempo, mensurá-lo tal como fazem as crianças?


Como otimista que sou, ainda persevero na crença de que existam ainda últimos remanescentes dos antigos flaneurs, dândis desse mundo moderno em convulsão. Adultos que dirigem seu tempo como as crianças o fazem: a partir das vivências de seu interior, de seu corpo, de seus sentimentos, daquilo que lhes tornam livres. Há aqueles que recusam vivenciar as horas que não sejam plenamente suas. Recusam esse mundo descompassado e solitário, um dos legados da modernidade que modificaram as horas do relógio – que a cada momento correm mais velozes. Há pessoas de mente aberta e fé firme, que recusam o tempo que não seja o seu.


Reconhecemos nessas pessoas o sorriso sincero e uma face interrogativa. O jeito introspectivo demonstra o pensamento imerso em ideias, paisagens, lembranças, da mesma maneira que crianças estão mergulhadas em suas brincadeiras. Alguns desses indivíduos podemos inscrever na lista de escritores. Escrevem notas, textos, poemas ou qualquer absurdo que recorra ao pensamento derivado de um olhar sobre a janela, um lapso de criatividade, um momento de solidão e de uma conversa qualquer. O corriqueiro é um mundo em si mesmo, um mundo aberto à imaginação de quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, liberdade para sentir.




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Sobre a autora:

Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2013). Mestre em Educação Tecnológica no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (2016), com a dissertação “Affonso Penna e os repertórios do engrandecimento mineiro (1874-1906)”. Tem experiência na área de Patrimônio Cultural. Atualmente professora de ensino fundamental e médio na Escola Estadual Professor Caetano Azeredo.



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